Capítulo 05: Temperos
A luz caía por trás das montanhas, banhando o céu de laranja e azul. A sombra já imperava por entre os pastos e eu sabia que já estava atrasada para os meus afazeres. Bocejei com preguiça. Fiquei em pé levantando-me da beirada da torre e pulei para dentro do corredor. Ali vi os guardas humanos trocarem de lugar com alguns vampiros, na virada do turno.
Bati a terra das mãos e olhei uma última vez para a paisagem. De noite, ficava ainda mais perigoso, pois era a hora das bruxas. De onde eu estava dava para ver boa parte do reino, as luzes começavam a acender pelas pequenas residências, mas não dava para ver como estava perto dos muros.
Todos os vampiros dormem de dia e de tarde. Se não estiverem dormindo, já que eles cansam-se bem menos do que nós humanos, eles ficam trancados em seus aposentos e nas alas sem janelas do castelo. Eu não sou vampira e estava com saudades da luz do sol. Acordei mais cedo que o normal, já que tenho que fazer o horário deles pois sou dama de companhia. Eu queria conhecer aquela terra vermelha, pegar nela e ver se era mesmo tão fértil. Acho que qualquer coisa pode ser cultivada por aqui!
Tomei um revigorante banho no rio. Estava vazio e eu só soube porque quando entrei na água. Tão gelada! Saí tremendo, batendo a boca, achei que meu corpo todo fosse congelar e eu fosse morrer. Os raios solares me esquentaram depois que me vesti.
Dei uma volta pela propriedade. Cheguei a ir até a ponte e minha ideia era visitar Thalassa, mas não tive coragem de atravessar aquela cachoeira sozinha. Eu sei, sou uma covarde! Dei meia volta e me sentei na torre mais alta, para assistir ao por do sol.
Eu não poderia ficar até o final, infelizmente. O local em que o castelo estava instalada escurecia cedo: logo as montanhas encobriam o castelo com suas sombras e já devia fazer cerca de meia hora que isso tinha acontecido. Minhas irmãs já tinham acordado e eu podia imaginá-las reclamando por não ter preparado o banho delas.
Ontem, antes de irmos dormir, Lady Raiane enviou uma carta com o selo de Zegrath para elas, convidando-as para tomarem café na Ala Zegrath, pois um fazedor de sapatos havia sido convidado pela mãe de Raiane e seu irmão ofereceu um par de sapatos para cada donzela. Claro que Annaju e Aradya estavam eufóricas.
Eu pretendia amenizar a bronca que elas pensavam em me dar dizendo que fui colher temperos para o banho. Sei que Aradya adora a delicada fragância da lavanda, mas Annaju gosta de cheiro mais herbal, como majericão.
O Castelo Riezdra tinha uma boa área na cozinha e eu vi quando os camponeses trouxeram sacos de legumes. Perguntei para um soldado onde ficavam os temperos e ele me avisou que uma horta era cultivada perto da cozinha.
Eu precisava logo aprender o mapa do castelo, pois se perder é muito fácil quando se tem muitos corredores. Os funcionários eram um pouco mau-humorados em ter que dar indicação! Por isso, desci pela torre até chegar ao pátio e conternei por fora, para encontrar a cozinha.
Foi fácil de reconhecer o local, muitas mulheres corriam de um lado para o outro com cestas de comida e outras vinham com cestos de roupas. Boa parte das damas e senhores de companhia já estavam em ofício quando atravessei o local. Segui uma menina que estava com uma cesta de morangos e senti o cheiro do açúcar queimando quando me aproximei.
A cozinha era enorme, mas era uma caixa de pedras sombria, com cheiro de tudo. Muitas pessoas estavam por ali. Havia uma grande mesa de madeira na qual cozinheiras amassavam a massa do pão. Uma criança descascava as batatas com cuidado. Uma mulher bateu na cabeça da criança:
-- Corte as tiras mais ralas! - Reclamando.
A criança obedeceu, com suas mãozinhas delicadas, mas as cascas da batata já estavam saindo quase transparentes de suas mãos. E eu sabia que aquelas cascas iriam para os camponeses, os restos dela chegariam até os muros. Bem que o rei podia mandar um pouco de batatas, não apenas as cascas. Vi a criança tirar uma lasca mais grossinha e colocar dentro da roupa, olhando para os lados para ver se alguém tinha visto.
Dois homens se ocupavamem acender o grande forno de pedra, para assar os pães e outros jovens, homens e mulheres, decoravam os bolos. Uma moça jogava uma calda de caramelo por cima dos morangos, quase derreti de fome, vendo a calda caindo por cima dos frutos.
Tive que me concentrar. Aquela comida não era para mim. Os senhores e damas de companhia eram convidados a comer os restos. Sempre sobrava muita comida, ontem mesmo, eu me lembro de ter comido uma coxa inteira de frango depois do jantar dos nobres, mas não sei se dizer se Annaju E Aradya deixavam em seus pratos para mim. Elas sempre me protegeram bastante.
As outras damas começaram a notar e eu tive que passar um pedaço enorme de bolo de ameixa adiante uma vez. E droga, ele tinha recheio de doce-de-leite, meu favorito. Eu não tinha ainda feito amizade com nenhum dos servos do castelo ou de outras Casas. Ficava a maior parte do tempo com minhas irmãs, mas devido aos comentários, achei que era melhor me enturmar um pouco.
Estou decidida, hoje quando o trabalho terminar e todos forem se sentar para comer os restos na cozinha, eu vou fazer amizade com alguém, nem que para isso eu tenha que dar toda a minha comida!
Contornei a cozinha e consegui chegar ao lado de fora, depois de desviar de cestos de trigo que entravam nos braços das senhoras mais robustas. Passei por baixo da perna de uma:
-- O que é isso menina!
-- Menino! Acho que é um menino! - Outra disse.
-- Mas que falta de respeito. - Uma terceira resmungou.
Passando a porta estavam homens em carroças, trazendo a comida. Havia um boi inteiro sendo transportado. Oba, hoje era noite de carne! Quem sabe eu desse sorte. Atravessei pelas carroças e peguei a lateral direita.
Ali tinha uma pequena horta de temperos, perto da casa do caldeirão, onde todos os molhos eram preparados. Tinha hortelã, pimenta, salsa, e os arbustos de manjericão. Eu queria especialmente as flores, pois elas eram ainda mais cheirosas.
Aproximei-me, arranquei dois cumes de flores e coloquei dentro da bolsa. Foi então que vi um limoeiro e pensei que seria uma ótima mistura para Aradya não reclamar do cheiro escolhido por Annaju, se eu colocasse umas folhas de limão. Cheguei perto do pequeno arbusto, uma faca passou por mim e encravou no caule. Tomei um susto.
-- Está roubando a horta do Imperador, ou é impressão minha? - Uma voz, que não era nem forte e nem fraca, nem alta e nem grave, mas incrivelmente branda, chamou por mim.
-- N-não estou roubando nada! - Girei e encarei um rapaz de uniforme de cozinheiro encostado no batente da porta do caldeirão e de braços cruzados.
Ele era alto e magro, de cabelos castanhos escuros ondulados até o ombro e olhos incrivelmente azuis, como o céu da manhã. Seu rosto era queimado do sol, as bochechas levemente vermelhas de trabalhar em uma panela bem quente e uma barba escura delineava sua feição alongada. Suas sobrancelhas eram grossas, próximas aos olhos grandes e ovais. Os globos azulados ficavam um pouco para cima, dando aind a mais seriedade naquele olhar.
-- Então está fazendo o quê, pivete? - O rapaz perguntou, batendo os cílios longos e escuros sem paciência.
-- Eu não sou nenhum pivete! - Ignorei os aviso, puxei uma folha de limão, peguei a faca e andei até o rapaz, estendendo o objeto. -- E você podia ter cortado meus dedos, sabia? Só vim pegar para temperos para os banhos de minhas senhoras!
O rapaz jogou os olhos na faca em minha mão. Demorou um pouco ponderando, mas descruzou os braços, pegou a faca e empunhou como um dedo próximo ao meu nariz.
-- Fique sabendo que perder os dedos é o mínimo para quem estava mexendo na horta do Imperador. - Ele avisou, sem qualquer alteração no rosto.
-- Ollie? - Uma voz feminina interrompeu.
O rapaz olhou por trás de mim e guardou a faca em seu avental sujo de mil coisas, tinha uma mancha marrom, uma verde, outra amarela. Era um avental comum como todos os outros funcionários usava, mas havia algo de diferente nas suas roupas por baixo do avental, não eram uma túnica, ele usava uma calça de couro marrom escura e no pescoço, um cordão com um dente de animal amarrado. Ele se retesou um pouco, dando um passo para trás, mas continuou com cara de poucos amigos.
-- Ele está assustando você, não está? - A menina chegou do meu lado. Ela tinha os cabelos trançados e presos enrolados na cabela, de um tom dourado como os de sua sobrancelha. Seus olhos eram bem azuis e seu rosto bem leve, com um sorriso simpático. -- Ele é sempre assim mau-humorado, não se intimide.
-- Eu não estava intimidada. - Torci a boca, continuei olhando para o rapaz, para que ele soubesse que não é uma faca que vai me assustar. Bruxas, talvez. Facas, não.
-- Pois deveria. - Ollie acrecentou derrubando os olhos pesados em mim. -- E não venha mais roubar temperos, se quer sais de banho ou sabonete, devia ir comprá-los na loja dos Blonard.
-- O que é um sabonete? - Perguntei.
A menina explodiu em uma gargalhada e colocou a mão no meu ombro:
-- Uma barra dura usada para tomar banho e perfumar a pele. Venha, eu te levo até lá. - Ela segurou no meu braço. -- E não demore com o gaspacho, sabe como a Sra. Carmen fica quando você atrasa.
-- Estaria pronto se esse pivete não ficasse roubando coisas de onde não deve.
-- Não sou pivete! - Retruquei irritada. -- Eu tenho um nome.
Ollie revirou os olhos e voltou para perto do fogão onde um caldeirão médio de metal negro estava cheio até a boca com um líquido borbulhante laranja, mexendo a colher de pau.
-- Gaspacho é para servir frio, você sabe, não é? - A loira avisou, com a voz arrastando, como uma pergunta que está testando se pode ser feita.
-- Shh, Karlene, não me atrapalhe. - Ele abanou a mão para ela.
-- E você, como se chama? - Karlene virou-se para mim.
-- Vassily.
-- Muito prazer, eu sou Karlene de Zegrath, dama de companhia de Lady Raiane e esse é Olivier, cozinheiro de temperos. - Karlene apresentou. -- Vamos, eu te levo até a loja de Blonard.
-- Obrigada.
Karlene me puxou. A última coisa que vi foi Olivier tirando do fogo o caldeirão pela alça e afundando pela metade em um enorme caldeirão de metal com água, fez tanto vapor que ele começou a tossir. Que desastre!
-- Eu acho que te vi esses dias na Ala de Rynbelech, vocês acabaram de chegar, não foi? - Karlene perguntou, enquanto contornávamos pelo outro lado.
-- Foi sim. - Respondi.
-- Você já iniciou a sua transformação? Todos por aqui ou são recém-transformados ou estão na metade do processo.
-- Ah, ainda não. - Dei um sorriso semi-simpático, meio sem graça. -- Mama Majaris prefere esperar o momento certo.
-- Oh, você já pagou por sua liberdade e não te deram? - Karlane colocou a mão livre na boca, abrindo bem os olhos espantada.
-- Ah, não, não, é complicado de explicar. - Fugi um pouco do assunto.
Eu sempre fico sem saber o que dizer nessa hora. É que Mama Majaris sempre disse que sou especial e que isso por si só me dá o direito de me transformar em vampiro, mas o Conselho precisa aprovar. Eu pensei que logo que chegássemos aqui eu me transformaria, mas Mama Majaris disse que ainda estão pensando no assunto. Fiquei sabendo que esperam a chegada de Lorde Mordecai antes de terem certeza.
-- Bom, mas é melhor você se apressar para dar o banho de suas senhoras, pois sei que foram convidadas por Lady Raiane para participar do café e eu já vim buscar os comes e bebes. Sorte sua que o gaspacho não estava pronto! - Karlene piscou um olho.
Ela me levou até longe no castelo, onde os tapetes perdiam suas cores verdes e mudavam para vermelho. A bandeira de Blonard, com a árvore da vida dourada bordada, ilustrava a quem pertencia agora aquele local. Havia no pátio interno uma lojinha, com diversas coisas que eu nunca tinha visto na vida, mas Karlene me explicou todas elas: o shampoo, para lavar os cabelos, o condicionador, para ficar mais fácil pentear e o sabonete, que serve para perfumar a pele e limpar. Pude pegar o que eu quisesse, pois eles anotam quem pegou e depois passam a conta para Mama Majaris. Não abusei, peguei um de cada, de cheiros variados e pasta de dentes sabor damasco - também tive que comprar duas escovas, pois não pode usar a mesma, segundo Karlane.
Despedi-me de Karlene muito agradecida pela ajuda, eu estava doida para testar as novas compras. Andei pelo castelo apressava, na direção da Ala Rynbelech, quando alguém puxou a ponta domeu rabo de cavalo.
-- Ei, Boba, onde pensa que vai? - Aquela voz forte e rouca atingiu meu ouvido como uma onda inesperada do mar, quase me afoguei, tive que prender o ar no pulmão. Girei e encontrei Andersen, com seu traje de treinamento, a túnica negra e dourada. -- Por acaso está fugindo de mim?
-- O quê?
--É que eu me lembre... Faz três noites que ficou de treinar e não apareceu nenhuma vez. - Ele cruzou os braços e curvou um pouco o corpo musculoso, enorme, para olhar bem nos meus olhos.
-- N-não, claro que não. - Exasperei, dando um passo para trás. -- Estou só muito ocupada com meus afazeres. Mas avisarei minhas senhoras do treinamento.
-- Lady Annaju e Lady Aradya estão treinando com Adam e Connor, respectivamente. - Ele piscou impaciente, me dando uma espécie de bronca.
-- Eu não diria que estão treinando, Aradya e Connor devem estar é fazendo outra coisa e Annaju só está usando Adam para poder ficar sem ter o que fazer. - Ajeitei a cesta de produtos de banho no braço.
-- Mas as duas tem poderes, elas não precisam realmente treinar, você por outro lado, é uma donzela indefesa e totalmente sem utilidade.
-- Perdão? - Estreitei os olhos.
-- Só estou dizendo. Lady Rynbelech solicitou que eu a treinasse, porque eu sou o melhor no que faço. - Andersen sentenciou.
-- Nossa, falou o Sr. Modéstia. - Revirei os olhos.
-- Eu não preciso de modéstia, sei bem os meus limites... Mas você, por outro lado... - Ele me cutucou com o indicador no ombro. -- Não faz ideia dos seus. Se quer permanecer sem saber usar uma espada quando as bruxas atacarem... Aí não é problema meu!
-- Olha, colocando assim em palavras... - Ponderei. Soltei um suspiro, totalmente vencida. -- Tenho que acompanhar minhas irmãs no café na Ala Zegrath. Mas eu gostaria de ser treinada.
-- Espere, o que disse? Não ouvi direito. - Ele deu um daqueles sorrisos bastardos de pura vitória e colocou a mão no ouvido direito, fazendo um cone.
Fiz cara de tédio.
-- Por favor, Sir Andersen, conceda-me a honra de ser treinada pelo melhor oficial de todo o reino. - E fingi um bocejo, só para ser difícil.
-- Muito bem, Boba! - Ele colocou as mãos na cintura, erguendo o queixo. -- Depois que der o almoço para suas senhoras, encontre-me no campo de treinamento.
-- Certo, tudo bem.
-- Não se atrase.
-- Tá, tudo bem! - Arfei impaciente e segui meu caminho.
Voltei correndo para a Ala Rynbelech, Annaju e Aradya já estavam de pé e nervosas com a possibilidade de se atrasarem, mas eu mostrei tudo o que trouxe a elas e ficaram tão felizes que esqueceram.
Agora, uma nota: os cabelos de Aradya ficaram tão lisos que não deu para prender com barbante, pois ficavam escorregando. Ela teve que ir sem tranças. Amanhã, vou trazer uma coroa de flores.
***
A Ala Zegrath era enorme e especialmente decorada com bandeiras púrpura e dourada. Os soldados nos deixaram entrar, passamos para a sala onde seria servido o café e notamos que não tinha mais ninguém. Apressamos-nos tanto para não atrasar que acabamos conseguindo recuperar o horário e fomos as primeiras a chegar.
Foi bem em tempo de flagrar Lady Raiane aos beijos quentes e avermelhados com o rapaz que é senhor de companhia de Lorde Leone. Henri é um rapaz bem bonito, alto e que tem as mãos gentis ao segurar as escápulas de Lady Raiane, mesmo assim, eles se beijam de forma avassaladora, amassando os lábios e os narizes, entre alguns gemidinhos de prazer.
O vestido de Lady Raiane é inteiramente roxo, com lindos bordados e seus cabelos ondulados escuros estão presos em um meio rabo-de-cavalo, em sua cabeça, uma tiara dourada contornando, na testa, um pingo de diamante. As roupas de Henri, a meia-túnica roxa bem escura, quase negra, contrastavam com sua pele bem branca e eram feitas de panos muito simples. Ele já era um vampiro, mas ainda um servo e precisaria ter muito dinheiro para levar esse romance adiante. Todos sabem que um rapaz precisa ter dinheiro para comprar o dote de uma moça, se quiser se casar com ela.
Eu fiquei parada sem reação, por ver Lady Raiane com as mãos para dentro da túnica de Henri, ele já quase não tinha forças no joelho para ficar em pé e se escorava na parede. Os dois pareciam completamente absortos, sem a menor noção que eu ou minhas irmãs estávamos na sala. Lady Raiane chupava os lábios cheios de sangue de Henri, de forma que as pontinhas de seus dentes de vampiro apareciam. Essa era a parte que mais me assustava nos vampiros: a sede por sangue. A forma com que eles pareciam gatos obcecados por um vagalume reluzente, e fariam de tudo para apanhá-lo.
Os vampiros, são como os gatos que brincam com os insetos, até que se cansam e o matam. Nós, os humanos, somos como os insetos: temos asas para voar para longe dos vampiros, mas dificilmente conseguiríamos escapar. A primeira vez que Annaju tomou sangue ela disse que se sentia forte e viva. Mas quando a via tomar sangue, eu pensava outra coisa, o quanto ela estava necessitada do sangue. Era uma espécie de maldição: mesmo que não quisesse mais, ela tinha que tomar sangue ou morreria.
Porém, presenciando aquele beijo sangrento entre Lady Raiane e o servo Henri, eu não vi essa necessidade, essa fome que olha para o nosso sangue como se fôssemos apenas um pedaço de comida. Eu senti todo o amor transbordando naquele instante, que fluía de um para o outro. Soltei um suspiro admirado, Annaju e Aradya começaram a rir.
Lady Raiane soltou-se de Henri imediatamente, assustada, olhando para nós e Henri abriu os olhos cinzas em surpresa, colocando as mãos na boca, limpando o filete de sangue que escapoliu. Os dois levaram um susto grande, como se não esperassem por ninguém naquele momento e Lady Raiane estendeu as mãos para nós:
-- Eu posso explicar, não é nada disso do que vocês estão pensando! - Sua voz soou até apavorada. Atrás dela, Henri arrumou rapidamente a túnica e se ajoelhou. As meninas pararam de rir e Lady Raiane continuou. -- Por favor, não façam nada, por favor... Se disserem algo, eu estarei condenada e... E Henri também. - Ela agora colocava as mãos no corpo, como se o ar fosse pesado demais para respirar.
Henri encarou a mão de Lady Raiane e eu tive a impressão que se não fosse sua posição de submissão ser extremamente necessária, ele a abraçaria, tomaria sua mão e faria tudo para acalmá-la. Aradya e Annaju se entreolharam com estranheza, mas logo, deram um sorriso e balançaram as mãos.
-- Nossa calma! Não vamos dizer nada! - Aradya a tranquilizou.
-- Relaxa! Se a gente resolvesse contar tudo o que a gente já viu nesse castelo, oh... - Annaju colocou a mão na frente do pescoço fazendo uma linha horizontal. -- Muitas cabeças rolariam!
-- Seu segredo está seguro com a gente. - Aradya balançou a cabeça fazendo que sim.
-- É mesmo? - Lady Raiane suspirou, como se só agora seus pulmões funcionassem. -- Oh, obrigada, nem tenho palavras para agradecer vocês... Henri... - E arranhou a garganta. -- Por favor.
-- Sim, senhorita. - Henri ficou em pé rapidamente, acertou a túnica no pescoço e reverenciou Lady Raiane. -- Avisarei seu irmão que o café está para começar.
Ele foi passar em direção a porta, mas Lady Raiane segurou em sua túnica, puxando-o e deu mais um beijo na boca e Henri, que ficou um pouco desconcertado na hora, olhando para a gente, com receio, talvez, mas depois se entregou, segurando na cintura dela. Quando se soltaram, sorriram um para o outro com carinho e Henri passou por nós mais despressa que um coelho, abaixando a cabeça, sem jeito.
-- Vou te contar, viu, vocês sabem mesmo se divertir por esse castelo! - Aradya comentou. -- Pelo visto, dar uns beijinhos em Connor não é tarefa tão impossível assim.
-- Espere, ouvi bem? Beijos em Connor, Aradya? - Annaju virou-se para ela fingindo estar brava, com as mãos na cintura.
-- Digo, se fosse o caso. - Aradya revirou os olhos.
-- O que é isso? Vai fundo! Não é Lady Raiane?
-- Meninas, por favor, descrição. - Lady Raiane abaixou a cabeça e puxou a lateral da saia do vestido em reverência. -- Agradecida pelo silêncio de vocês. Por favor, sentem-se, ainda estou esperando o gaspacho, já mandei a camareira ir buscar, mas até agora não voltou.
-- Alguma coisa me diz que esse gaspacho vai chegar é bem quente. - Comento.
Lady Raiane pede que sentemos, ela faz questão que eu me sente na mesa com elas o que me deixa sempre sem graça por conta dos comentários dos outros servos, mesmo assim, estou morrendo de fome e me sento, espero que venha aquele bolo de calda de caramelo com morangos!
A mesa está lindamente decorada com louça branca e roxa, pintada a mão e bordas douradas. O mais incrível é que cada prato tem uma pintura diferente com o nome das convidadas. Mama Maja me ensinou a ler e escrever, então consegui ver o de todas! Fiquei surpresa de haver um conjunto feito especialmente para mim, será que posso levar para casa depois? Nunca tive um prato só meu.
Logo começam a chegar as outras meninas: Zoe, Kirsten e Malena de Bawarrod. Zoe dessa vez não trouxe o seu tigre pela falta de espaço, mas depois iremos passear no jardim com ele. Por fim, chegou Lady Amber.
-- Onde está Amy? - Lady Kirsten perguntou, servindo-se de chá.
-- Ela está com um pintor em casa, desses de fazer retratos. - Lady Amber puxou uma cadeira sentando-se à mesa, bem ao lado de Annaju. Elas sorriram uma para a outra.
-- Com licença, Lady Raiane, o gaspacho! - Vejo Karlane chegando pela porta.
-- Oh, traga aqui, finalmente! - Lady Raiane solta metade do pãozinho em cima do prato e abre um sorriso muito animado. -- Meninas, gaspacho é uma bebida típica da espanha, eu tomei quando estava viajando por lá, vocês ficarão doidas! Karlene, traga os copos, sirva-nos!
Eu noto os olhos de Karlene em cima de mim, sentada à mesa ao lado das nobres herdeiras e com a boca cheia de biscoito. Ela deposita a jarra de vidro em cima da mesa, cheia daquele líquido alaranjado e vira-se para o buffet para pegar os copos.
Lady Raiane examina o jarro, toca com os dedos e cheira o vapor.
-- Oh, está mesmo quente! Como você sabia disso, Vassily? - Ela coloca as mãos na cintura.
Agora, os olhos de todas caem em mim, inclusive o de Karlane. Engulo o bolo que se formou na minha boca do biscoito como se fosse uma pedra.
-- Ah, bem.. - Começo. -- Eu não sabia da loja de sabonetes e fui até a horta pegar temperos para perfumar o banho de Aradya e Annaju... Aí tinha esse rapaz...
-- Um rapaz? - Annaju olha para mim surpresa.
-- Que rapaz é esse? - Aradya interrogou estreitando os olhos enciumada.
-- Amigo da Karlane, ela que me ajudou e me levou na loja. - E enchi a colher de doce de leite e enfiei na boca para não ter que dizer mais nada.
-- Oh, Karlane? Você é amiga de Vassily e não me disse nada? - Lady Raiane ergue os olhos. -- Ande, largue isso aí e sente-se na mesa com a gente.
-- Eu posso? - Karlane abre bem os olhos.
-- Claro, vai nos contar direitinho essa história do gaspacho quente! Queremos todos os detalhes. - E ela olha para as meninas. -- Podem me ajudar com os copos?
-- Ah, bem, tem esse rapaz que começou a trabalhar na cozinha faz pouco tempo, ele é um especialista em ervas da Casa Mordecai... Ele não é assim bonito nem nada, mas... - Ela suspira. Eu me levanto, indo pegar os copos para Lady Raiane. -- Bem, acontece que...
Karlane então conta toda a história, sobre como eu fui pegar as ervas, mas não podia e ele pensou que eu fosse uma ladra e como ela me levou para a loja da Casa Blonard. Enquanto ela contava, servi a todos e notei que ela fez parecer que nos éramos muito amigas, mas eu tinha conhecido Karlane naquele dia! Faziam poucas horas, até! Mesmo assim, não disse nada, eu não queria me desfazer da primeira amizade que tinha conseguido fazer.
Servi o gaspacho e tomamos depois de um brinde. Era uma bebida de tomate e pimentão, com muito manjericão, mas que deve ser tomada fria, segundo Lady Raiane. Olha, ainda bem que estava morna, senão eu teria cuspido tudo no chão!
Logo depois que bebemos o gaspacho, o fazedor de sapatos chegou e junto com ele, Leone, acompanhado de Henri.
(Continua)
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