Capítulo 08: O anjo
Aquele homem era uma muralha, mas ele não era um vampiro e eu sabia que não era tão forte quanto um, ou seja, ele não podia me assustar. Além disso, meu sangue estava fervendo tanto que eu aceitei aquela boa briga no momento em que ele ficou em pé, com cara de mau e a boca torcida em uma careta irada.
-- Claro que vou. - Apoiei as duas mãos na mesa e cuspi no prato dele.
-- Você cuspiu no meu prato, pivete? - O homem segurou na minha túnica, me puxando para mais perto. -- Quer morrer?
-- E suponho que você pense que quem vai me matar é você? - Provoquei, sorrindo de canto.
-- Preston! - Olivier gritou, chamando atenção dele. Vi a muralha erguer a cabeça para ele. -- Sabe que não pode comprar briga com outro brasão.
-- Hunf. - O homem resmungou antes de me soltar. Fui empurrada para trás, mas fiz questão de recuperar o equilíbrio e cair em pé.
Olivier se aproximou da mesa, olhou rapidamente para mim, só para checar se eu estava bem e apontou para o prato:
-- Se cuspiu e você não vai mais comer, posso usar para engrossar a sopa?
-- Tá, vai, pode. - Preston empurrou o prato na direção dele e se sentou, rangendo os dentes.
-- Obrigado, todas as caravanas agradecem você por isso. - Olivier disse, girando e seus olhos encontram o meu, um sorriso se forma em seu rosto e ele pisca um olho para mim.
-- Aqui, eu também já acabei. - Um dos caras que vi segurando o prato o estende.
-- Eu também. - Uma garota diz.
Karlane é quem se levanta rapidamente para ir buscar os pratos e ajudar, mas alguns fazem questão de entregar o prato para mim. Uma menina sorri com orgulho, outro passa a mão na minha cabeça, adulando e bagunçando meus cabelos e acabo com uma pilha de pratos com restos de comida.
-- Uau, isso foi produtivo, não foi, Ollie? - Karlane se aproxima dele com uma pilha de pratos por si só.
-- Vai dar uma ótima sopa, uma das melhores em dias, todos ficarão animados. - Olivier lança um sorriso leve e bonitinho, contente com o resultado. -- Ei, pivete! - Ele vira-se para mim, tomo até um susto. -- Traga esses pratos, a sopa está no caldeirão.
-- Não sou pivete! - Resmungo, aproximando-me deles.
-- O nome é Vassily. - Karlane avisa, colocando uma mão na cintura e apoiando os pratos com maestria em uma mão só.
-- Eu sei, só acho que pivete é mais adequado. - Olivier responde com simplicidade, soltando os pratos em cima de outra pilha e puxa com esforço da mesa, segurando com as duas mãos, segurando com os braços esticados e apoiando no corpo. -- Primeiro rouba temperos, depois arruma confusão na cozinha...
-- Certo, acho que é justo. - Karlane concorda, abrindo a porta da cozinha para ele.
-- Claro que não é! - Protesto, adiantando-me para passar atrás dele.
Olivier dá uma risada fofa e Karlane vem atrás de nós. Passamos pela área externa, deixamos os pratos em cima da mesa e Karlane começa a pegá-los para raspar com o dedo, para que o conteúdo, por inteiro, caia ao caldeirão. Não sobra nem uma migalha. Ela tira mais um da pilha, vai para a grande panela. O vapor do cozido exala um cheiro forte de tempero e alho, a sopa parece maravilhosa, mesmo feita de restos.
Eu me aproximo para olhar, o líquido está fino, porém com um colorido diferente, meio da cor de vinho e percebo que foram acrescentadas folhas das beterradas e das cenouras, que normalmente, jogam fora. Karlane sorri para mim, raspando o prato e ela não deixa nem um grãozinho de arroz sobrar.
-- Aqui, pivete. - Olivier me estende um prato. -- Não fique igual uma planta que não faz nada.
-- Tá, tá. - Arfo e pego o prato das mãos dele com uma revirada de olhos, puxando e virando para o calderão.
-- Seja gentil, Olivier, Vassily nos ajudou a conseguir mais pratos, quando foi que tivemos tantos? - Karlane sorri simpática para mim.
-- Serei gentil depois que Vassily ajudar a distribuir a sopa. - Ele me olha de canto e nossa, posso derreter com a forma com que o fogo que aquece a grande panela e ilumina a sala de temperos ilumina o seu rosto.
-- Tio Olivier! - Uma voz de criança chama.
Viramos todos para a porta, o menininho que estava cortando batatas acena, chamando por ele.
-- Ah, oi, Marco! - Olivier passa as mãos no avental verde-escuro do uniforme de cozinheiro e se aproxima dele, abaixando, para ficar da mesma altura. -- Como foi o seu dia hoje?
-- Foi legal, eu cortei batatas e separei as cascas, como você pediu!
-- Eu sei, e elas ajudaram muito, já estão na sopa! - Olivier sorri e se levanta, colocando a mão na cabeça do garoto. -- Vá para casa e avise a todos que logo chegaremos lá.
Eu raspo o prato e me viro para pegar outro.
-- Mas espera... - O menino segura em Olivier. Ele olha para os lados checando se tem alguém e coloca a mão no bolso, tirando aquele pedaço de batata que eu o vi guardar. -- Peguei essa também, ninguém viu e a sopa vai ficar mais gostosa.
Pego mais um da pilha e vou até a panela, Karlane passa por mim umas duas vezes, sendo bem mais rápida e eficiente nessa tarefa de raspar.
-- Marco, obrigado mas... - Olivier suspira e pega o pedaço de batata. -- O que foi que eu disse para você? Não pode furtar nada, isso é roubo e muito errado!
-- Mas foi só um pedacinho. - O menino diz.
Eu raspo mais um prato e levo para a pilha de pratos sujos.
-- Mesmo assim, não posso aceitar. Você não pode furtar nada, está entendendo? - Ele balança o pedaço de batata na frente do menino, parece tão bravo que o menino fica com os olhos cheios de lágrimas. -- Se souberem disso, você pode ser castigado, é isso o que você quer?
-- Eu só queria ajudar... - O menino começa a chorar.
Nossa que dó! Pego outro prato da pilha e levo lá. Olho para Karlane, ela está raspando de maneira muito automática. Começo a raspar, mas fico olhando o pobrezinho chorando.
-- Escute, eu sei, mas não faça isso nunca mais. Promete? - Olivier coloca a mão na cabeça dele. -- Não chore.
-- Eu não vou fazer mais, tio! Eu p-prometo.
-- Isso, bom menino. Vou devolver isso para o imperador e pedir desculpas no seu nome. Tá bem? - Olivier guarda a batata no bolso do avental.
-- Tá bem...
-- Agora vá para casa e cuide de sua mãe, quem sabe a sopa de hoje não ajude ela a ficar melhor? - Olivier o gira e dá um tapinha para ele sair da cozinha.
Olivier vira, encontrando os meus olhos curiosos. Ele suspira e ergue os ombros e as mãos, como quem não sabe nem o que dizer e se aproxima da pilha de pratos, tirando um e trazendo para a panela.
-- Você não vai realmente devolver ao Imperador, não é? Se alguém souber que ele furtou, já será um castigo daqueles. - Aviso, só para ter certeza.
-- Não, mas ele não sabe. Assim ele não vai fazer mais. - Olivier passa o dedo pelo prato, sujando, mas tirando todo o purê de batata e espinafre, jogando dentro da panela.
Eu pego o prato vazio dele, juntando com o meu e Olivier tira a batata do bolso, olha para ela meio que contemplando, enche os pulmões de ar erguendo as sobrancelhas retas e simétricas e atira dentro do calderão.
-- Vamos, raspe tudo, inclusive os ossos. - Ele diz, se virando e indo pegar mais pratos, quase se bate com Karlane e dá um passo para trás.
-- Os ossos também? - Pergunto, piscando várias vezes os olhos, surpresa.
-- A maioria derrete enquanto estamos lavando os pratos, mas muitos, comem o que conseguem deles, a parte interna é muito cheia de vitaminas. - Karlane explica, desviando de Olivier e indo raspar mais.
-- Então tá bem. - Aceno que compreendi e continuo ajudando.
***
É um trabalho forte esse de ajudar os outros. Primeiro limpamos os pratos com os dedos, a sopa dá uma engrossada, mas não chega a ser uma daquelas sopas de legumes batido, pois Olivier não deixa o caldeirão baixar, colocando sempre mais água para render, conforme o cozimento evapora.
Depois que terminamos, levamos os pratos para a cozinha novamente e já não tem quase ninguém. Quem está por lá ajuda na lavagem e eu fico impressionada de ver que poucas pessoas se preocupam em fazer a diferença dessa forma. Na minha cabeça, é tudo muito simples: se todo mundo se ajudasse, começando do Imperador, haveria fartura para todo mundo. Quando externo meus pensamentos, Karlane segura a risada, com as mãos afundadas na água:
-- Você é tão boba, Vassily! A maioria dos vampiros são assim, egoístas! E você viu Preston! - Ela aponta.
-- Ah, sim. - Respondo chateada. Realmente é besteira pensar que todos fariam isso de coração puro, afinal, existem aqueles que nascem com a maldade no coração ou que, depois de passar muita dificuldade, ficam ressentidos e não querem mais ajudar ninguém.
-- Mas, ei, eu gosto da forma como você pensa. - Olivier me dá uma ombrada, secando os pratos que ela lava.
-- Obrigada. - Seguro um sorriso com o elogio e guardo o prato na pilha, que uma mulher fortuda ergue e guarda no armário de louças.
-- É uma utopia e você é tão sonhador como ela. - Karlane revira os olhos.
-- Sei que é uma utopia, mas ela tem razão, se cada um fizesse sua parte... - Olivier deixa as palavras morrerem por aí.
Eu não digo mais nada e apenas continuo com o meu serviço. Algum tempo depois, a sopa fica pronta e separamos em várias panelas grandes, mas menores que o calderão, para que as pessoas possam levar para grupos e fazer a distribuição para o maior número de gente possível.
Um cocheiro chega com uma carroça torta e nos dá carona. Oliver me estende a mão para eu entrar e a princípio, hesito, mas ele insiste, me puxando pelo pulso. Karlane revira os olhos, como se o meu medo de atravessar a ponte fosse meio maluquice. Eu me seguro bem na carroça e Olivier apenas ameaça me jogar de lá, brincando, claro, ou eu o mataria.
Enquanto entregamos sopa, acabo descobrindo um pouco sobre quem esses meus novos amigos são. Karlane perdeu os pais de forma trágica e ficou sozinha, quando decidiu que queria ser uma vampira e passou a juntar dinheiro, ela já estava em transição e pretendia ser apresentada à Sociedade dos Vampiros em breve, mas ela ainda não tinha recebido nenhuma Herança, pois os senhores de Zegrath apenas entregam Heranças quando a transformação se completa.
Olivier explicou que na caravana da qual ele faz parte é um pouco diferente, eles recebem as Heranças tão logo iniciam sua transformação e ele mesmo já possuía algumas: Metamorfose, Benção Lunar e Herbalismo, o que o fazia um mestre em encontrar folhas e fazer remédios ou qualquer coisa delas.
-- Nossa, metamorfose deve ser incrível!
-- É, mas não se engane, ele só pode virar um tourinho bebê, ainda, não é como se ele possa ser um minotauro como os outros. - Karlane logo fez pouco de Olivier.
-- Não é exatamente um "tourinho". - Olivier revirou os olhos magnificamente azuis, aborrecido com o comentário. -- Ela está fazendo pouco de mim, mas lembro bem que ficou achando incrível quando eu contei.
-- Você está se exibindo para Vassily. - Karlane acrescentou com um amargor estranho na voz.
-- Bem, não se preocupe, pois é preciso mais que um minotauro para me impressionar. - Cruzei os braços, provocando.
-- Ei! - Olivier reclamou, mas com humor, sorrindo.
Logo chegamos nas caravanas e começamos a distribuir sopa, foi legal ir até lá, pois eu nunca teria coragem de ir sozinha e pedi a Olivier e Karlane que fossem comigo até o acampamento Rynbelech visitar Thalassa.
-- Oh! Vassily! - Thalassa quase não conseguia mais ficar em pé e eu não a fiz se levantar com todo aquele barrigão, apenas a abracei ali mesmo. -- E quem são esses com você?
-- Olivier e Karlane, meus amigos, por assim dizer. - Sorri.
-- Aqui, tome um pouco de sopa! - Karlane deu a ela uma cumbuca feita de casco de coco, havia uma fila enorme de crianças da caravana ansiosas e com suas cumbuquinhas pequenas, doidas pela sopa que estava chegando. -- Eu vou pegar uma extra para você, que esse barrigão precisa.
-- Obrigada. - Thalassa sorriu e olhou para mim, dando um gole na sopa.
-- Vocês têm muitas crianças por aqui e quase nenhum adulto. - Olivier estranha, checando a área com os olhos.
-- Foi um ataque das bruxas. - Explico com tristeza. -- Fomos muito reduzidos e perdemos basicamente tudo.
-- Eu vou ver se arrumo cobertores extras, sei de uma mulher no clã Mordecai que tem muitas peles, o marido dela é caçador. Não saia daqui que eu já volto. - Olivier pede, deixando-me com Thalassa.
-- Como estão as coisas no castelo?
-- Estranhas. - Ergo uma sobrancelha e fico observando o caminho que Olivier faz.
-- Estão dizendo que Mama Maja nos abandonou aqui. - Thalassa diz, dando mais um gole em sua sopa.
-- Não, ela nunca faria isso. - Protesto imediatamente.
-- Mas foi o que ela fez. - Thalassa retruca. -- Estamos vivendo com a doação dos outros e se não fosse o pessoal de Taseldgar, acho que já teríamos morrido. Temos vendido nossas pedras para eles, que fazem delas baralhos rúnicos. Trocamos pelo que eles tiverem, as vezes conseguimos feijão.
Mordo um pouco a boca. Mama Maja está cheia de joias. Aradya e Annaju tem esses vestidos lindos... E tudo o que sobrou de nós está aqui, com fome e frio. Não entendo!
-- Aqui, peguei mais um pouco para você. - Karlane passa mais uma cumbuca para Thalassa e olha para mim. -- Raspamos as panelas, quase não deu para todo mundo! Estou morrendo de calor, vou voltar para o castelo. Você viu Olivier? O cocheiro quer ir embora.
-- Ele foi até a caravana de Mordecai. - Conto.
-- Ah. Tá bem, vamos indo? - Karlane me chama, segurando no meu braço.
-- Vou esperar Olivier. - Puxo o braço para ela me soltar.
-- Bem, boa sorte com isso. - Karlane dá uma risada escrachada. -- Possivelmente ele já esteja dormindo na cabana dela e você aí, esperando..!
-- Vou ficar mais um pouco com Thalassa, então. - Coloco as mãos na cintura.
-- Faz o que quiser. - Karlane olha para Thalassa e acena. -- Boa sorte com o bebê!
-- Obrigada! - Thalassa acena, ela já está tomando seu segundo pote de sopa, mas não inteiro, ela deixa um pouco para a criança ao lado dela, dividindo. -- Esse Olivier deve ser muito bom de cama para vocês estarem assim, disputando ele.
-- Ih, que nada. - Dou risada.
-- Bem, então já que vai ficar, me conte tudo o que está acontecendo lá no castelo! - Thalassa pede. Dou um sorriso e fico com ela.
Depois que contei quase tudo para Thalassa, Olivier apareceu com um cobertor de pele de tigre e jogou sobre ela, mesmo estando o maior calor, ela agradeceu e disse que seria ótimo para dormir, já que a temperatura esfria bastante a noite.
***
-- Pensei que você tinha dormido em alguma cabana. - Está bem quente e eu estou morta e cansaço, preciso dormir! -- Pelo menos foi o que Karlane disse que você estava fazendo.
Olivier solta um suspiro e deita na grama, colocando as mãos nos olhos, incomodado com o sol. Eu me sinto tão culpada de fazer isso com ele, mas não posso atravessar aquela ponte, não, nem pensar. E se eu cair?
Caminhamos em silêncio boa parte do caminho, até que ele viu que eu não teria coragem de atravessar a ponte sozinha. Quando atravessei para sair do castelo, eu estava em uma carroça e não foi nada demais, fechei os olhos, me encolhi, ouvindo a risada de Olivier e de Karlane, não foi tão ruim assim, mas colocar os meus pés naquele chão bambo, era demais para mim.
A princípio, pensei que Olivier me deixaria para trás, mas ele se prontificou a esperar na beirada da estrada, em baixo de uma árvore que faz sombra, até que os homens da lavoura viessem trazer batatas, ou qualquer coisa, como vinho, sempre tinha uma carroça subindo e poderíamos pedir carona, já que ele conhecia todo mundo que trabalhava na cozinha e por ter tido a ideia das sopas, era muito bem relacionado.
Aliás, uma coisa a se dizer sobre Olivier, apesar de seus olhos frios, há toda uma emoção por baixo daquele ar de "não mexa nos meus temperos". Ele é uma pessoa de bom coração e que pensa muito no bem-estar dos outros.
-- Eu não ia abandonar você, se eu disse para me esperam era porque eu voltaria. - Olivier suspira, quase como uma confissão, uma de suas pernas está dobrada e a outra esticada. Ali a grama é alta, chegam na altura do meu ombro, mas estão dobradas em baixo dele.
-- Eu sei, por isso te esperei. - Concordo, deitando na grama ao lado dele. Viro o rosto para encará-lo e Olivier faz o mesmo, ainda com a mão sobre os olhos. -- Você está sozinho na caravana?
-- Ah, sim, faz muito tempo. - Ele é bem misterioso quando responde, parece que não quer falar muito no assunto o que me deixa curiosa.
-- Então, nenhuma garota ou familiar? - Pergunto.
-- Isso é você perguntando se eu tenho uma namorada? Por acaso tem interesse em mim, pivete?
-- Ei! Pivete, não! Meu nome é Vassily. - Dou um soco no ombro dele, que dá uma risada. -- E você não disse que seria gentil depois que eu ajudasse com as sopas? Pode começar a ser gentil.
-- Oh, é verdade, me desculpe, Vassily. - Ele pede, virando de lado e apoiando a cabeça na mão, com o cotovelo na grama. -- Por que você se refere a si mesma como menina, se todos dizem que você não é mulher?
-- Ah, não. - Reviro os olhos enchendo as bochechas de ar.
-- Esse assunto te aborrece? Então vamos mudar. - Olivier propõe, puxando um matinho e colocando na boca, roendo ou limpando os dentes, não sei definir.
Eu olho para o céu, que está azul como os olhos dele. Só de pensar nisso, parece meio besta, mas é verdade, fico com vontade de sorrir. Olho para ele novamente.
-- Certo, vou te dizer, já que você não estava no salão no dia em que Lady Camelia anunciou para todos. - Ergo o corpo um pouco, apoiando nos cotovelos. -- Eu sou os dois. Homem e mulher, em um corpo só.
-- Isso é possível? - Olivier abre bem os olhos surpreso.
-- Aí, tá vendo! É isso que me aborrece! - Arfo irritada. -- Esse olhar de surpresa, como se eu fosse uma criatura nojenta!
-- Não acho você nojenta. - Ele ergue as sobrancelhas, as duas, ao mesmo tempo. -- Na verdade, você é incrivelmente bonita, tanto como mulher, tanto como homem.
-- Hm. - Absorvo aquelas palavras, mas elas nem parecem falar de mim.
-- Bem, desculpe ter perguntado, não queria te aborrecer, na verdade, estou tentando ser gentil, mas não sou muito bom nisso. - Olivier pondera, abaixando a cabeça, olhando para a grama.
-- Acho que Karlane gosta de você.
-- Ah sim. Mas ela não é exatamente o meu tipo. - Ele sentencia.
-- E quem faz o seu tipo? Ophelia, de Blonard?
-- Não, também.
-- Nossa, então quem?
-- Vem cá... - Olivier tira o galho da boca e me chama, para chegar mais perto. Eu me aproximo, para ele falar, embora não tenha ninguém ao redor da gente para precisar de tanto segredo. -- Por acaso... - Ele sussurra no meu ouvido. -- Isso tudo é interesse em mim?
-- Aff, não seja ridículo. - Dou um empurrão, derrubando-o na grama e ele dá uma risada. Viro mais para ele, colocando o braço do outro lado. -- Você é sempre tão convencido assim?
-- Não. Quer dizer, normalmente, é o reverso. - Ele suspira e apoia a mão nas minhas costas, de um jeito íntimo, que eu não acho ruim. -- Tenho essa constante impressão que não sou bom o suficiente.
-- Por quê?
-- Eu não fui bom o suficiente para a minha mãe. Ela me abandonou logo que eu nasci, se não fosse pelo senhor Benoit, provavelmente eu estaria morto antes mesmo de aprender a andar. - Olivier desliza o dedo da mão nos meus cabelos, descendo, contornando o meu rosto. -- Eu sempre vou ter esse defeito que ela viu, não demorará para que as pessoas vejam isso em mim também.
-- Impossível. As pessoas adoram você. - Digo. Ele balança a cabeça com uma expressão de quem estranha e nega, deixando o braço escorregar para a grama. -- É sério, eu vi como todos ficam com você, admiram o que você faz. Esse lance da sopa ajuda muita gente.
-- Não deveria ser admirável, é apenas o certo a se fazer. - Ele comprime os lábios, me encarando firme. -- Tanto que quando começam a fazer, percebem que é bom ajudar os outros, pois ajuda a si mesmo também.
-- Se ao menos você soubesse! - Rolo de volta para a grama deitando do lado dele. -- Você é quem promove essa mudança nas pessoas, Ollie.
-- Diga isso de novo. - Ele encosta a cabeça na minha.
-- Você é quem promove essa mudança nas pessoas. - Repito, com uma revirada de olhos. E eu pensando que ele não tinha ego.
-- Não... "Ollie".
Mordo a boca, calando-me, minhas bochechas pegando fogo, não pelo calor, mas pela vergonha. Olivier solta um suspiro diante do meu silêncio e ficamos um tempo assim. Eu fico olhando para o céu, olhando as nuvens e vendo suas formas.
Estou tentando entender tudo o que está acontecendo, mas sinto como se as respostas fossem areia e eu não conseguisse juntar os grãos na minha mão. Há pessoas com fome e o Imperador assola a todos com impostos para que possam viver em suas terras e provar de segurança, para que as crianças possam crescer livres e felizes, porém, que felicidade é essa que é pela metade e só serve para que o Imperador encha o seu bolso com ouro? Por acaso, quando ele tiver todo o outro no mundo, o que ele pretende fazer com ele?
Escuto os cascos do cavalo. Eu me sento e enxergo a carruagem subindo a rua.
-- Ollie? - Eu o chamo, mas não tem nenhuma resposta.
Viro a cabeça, olhando para ele e Olivier está com o para cima, dormindo, respirando bem profundamente, o vento balançando os seus cabelos de uma forma quase mágica. Suspiro, deslizando o dedo por seu rosto, afastando uma mecha de sua testa. Ele se remexe como se tivesse um mosquito incomodando, balançando o músculo da bochecha, comprimindo as sobrancelhas e ajeitando a cabeça, mas sem nem ao menos ser capaz de acordar.
A carruagem passa por nós, sem ao menos nos ver ali debaixo da sombra da árvore. Suspiro e me deito novamente.
Eu acho que algumas pessoas são como anjos. Elas aparecem na vida das pessoas para ajudarem as outras. Com certeza Olivier é esse tipo de pessoa e se eu fosse perguntar uma a uma às pessoas a quem ele ajudou, elas concordariam que ele é especial e tem um coração maravilhoso.
Dói meu coração de pensar que ele não se sinta bem consigo mesmo, que fique procurando um defeito que provavelmente, não existe.
(Continua)
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Ei, e aí? Tão bem? Comente aqui o que está achando, é muito importante para eu saber o que agrada vocês. =) O Ollie é um fofo, mas o Andersen tem as manhas, né? Ai mds... nem sei qual eu shippo mais! E você?
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