Capítulo 01: O fim dos tempos
Associamos o apocalipse que destruirá o mundo em que vivemos a algum desastre natural, mas estão todos enganados. Não será a natureza que se voltará contra nós, nem algo externo vindo de outro universo. O que prenuncia o fim dos tempos remanesce dentre de nós mesmos. Nossa própria essência.
No clã de Rynbelech temos essa certeza: o mesmo sol que aquece é fogo e queima, o mesmo vento que guia pode levar-te à caminhos de perdição, a água pura que nutre também afoga e a terra que te protege, enterra sua alma. O que muda entre um e outro senão a nossa própria visão dos elementos da criação do universo?
-- Enquanto conhecermos o amor, nossas almas estarão salvas. - Diz Mama Majaris, nossa líder e uma mulher de cabelos enrolados, bem escuros, olhos lassos de brilho vermelho intenso e muito ouro preso na testa por dentro de um lenço azul celeste. Sua voz é como um sino, de tão afinada e intensa.
Ela é uma vampira, membro do Conselho da Sociedade dos Vampiros e em seu sangue está a força de Rynbelech, a deusa dos elementos e uma das nove partes do nosso Deus-Supremo Netheru. Todo vampiro leva no sangue o poder do deus Netheru, é o que lhe dá essa característica incrível de se tornar imortal, de usar a força do universo ao seu favor. O sangue é poder e se você tem o sangue de Netheru, você é poder. E é por isso que estamos todos correndo perigo, até aqueles que ainda não se transformaram, como eu. Mama Maja está sentada na carroça e nem parece se incomodar o chacoalhar de nossa tenda, estamos atravessando a mata fechada, buscando a proteção da floresta, mas a floresta também é o território das bruxas.
-- Não é a toa que existe um nome que damos para alguém de coração ruim: ratacitor. – Aradya, minha irmã de alma passa a mão nos braços, por cima das mangas longas do vestido azul com renda preta.
Aradya é uma vampira de nascença, filha legítima de Mama Maja. Tem os cabelos loiros na altura do ombro, lisos e olhos de brilho dourado intenso. Ela nem se parece com Mama Maja, mas seu rosto oval como o de uma princesa e olhos extremamente sedutores, vieram de um finlandês por quem Mama Maja se apaixonou, mas que morreu ainda muito jovem defendendo sua família da Santa Inquisição e Mama Maja saiu com Aradya ainda presa em seu seio, mamando, para pedir a proteção das águas. Elas escaparam ilesas e iniciaram a Primeira Peregrinação. Somos um povo nômade, mas os tempos são escuros para os de alma pura e estamos fugindo não apenas dos caçadores católicos, mas das Bruxas.
-- Acho que quando nomeamos algo dessa magnitude, fortalecemos sua existência. – Anna Julia, ou Annaju, simplesmente, é a mais nova aquisição de Mama Maja. Uma vampira recém-transformada de sangue muito forte e poderoso, que será sucessora de Mama Maja.
Ela tem os cabelos castanhos escuros, dobrados em uma trança longa e olhos vermelhos. Apesar de ainda estar em treinamento, Annaju já demonstra sua forte personalidade e repassa alguns ensinamentos.
-- O desconhecido é assustador, Annaju, dar nome é tomar conhecimento. Saber que um ratacitor existe ajudará a reconhecê-lo. – Mama Maja dá um sorriso paciente, seus olhos redondos caem em cima de mim. -- Não acha, Vassily?
-- Hm... Não sei, não. – Comprimo os lábios, que em mim são bem cheios e de formato redondo, meu nariz é um pouco largo e arrebitado, meus olhos castanhos escuros bem pequenos e amendoados, e minhas sobrancelhas finas e fortes, com uma curva bem marcada. Não me sinto feia, mas as pessoas nunca sabem se eu sou homem ou mulher, não tenho seios como minhas irmãs de alma, nem curvas sedutoras. Sou diferente de tudo. -- Tenho pesadelos só de saber que existem as bruxas, seria melhor que eu não soubesse que elas existem.
-- Não diga isso, claro que é melhor. – Aradya abre bem seus olhos em surpresa. -- Sabendo que elas existem você pode se proteger colocando um sino na abertura da tenda, para te acordar caso ela entre voando para comer seu coração.
A minha reação é a única possível: olho para a abertura de nossa tenda, nos fundos da carroça, os panos brancos erguidos por uma estrutura de metal sanfonado. Tiramos os sinos-de-vento para andarmos sem fazer barulho na mata, para não atrair as bruxas. Agora não saberemos se elas se aproximarem.
-- Não tenha medo, Vassily. – Mama Maja segura em minhas mãos, envolvendo-as com as suas, ela é bem branquinha, eu já tenho uma cor mais escura como o azeite, já que vampiros não podem andar no sol. -- Pamant proteja inimá.
-- Ainda não chegamos? Estou tão ansiosa! – Annaju abre uma frestinha na tenta, encarando lá fora. Eu olho também, está bem escuro e não enxergo nada. A noite, os vampiros enxergam como se fosse dia para nós, por isso eles não acendem tochas. Se bem que acendê-las na floresta é péssima opção, além de demarcar nossa posição para os inimigos que nos procuram, podem acabar machucando as folhas das árvores e do chão. -- Imagine só, viver em um castelo!
-- Você acha que viver em um castelo faz de você igual a eles? – Aradya estala a língua revoltada. -- Somos ciganas e eles sempre vão olhar baixo para nós.
-- Não guarde amargura, Aradya. Ciganas são livres. Eles vivem em muros. – Mama Maja diz.
-- Eu não vejo problemas em viver dentro dos muros, especialmente se fora deles existem bruxas. - Annaju replica, batendo os cílios como se fosse alguma informação óbvia.
-- Meu coração é livre. – Aradya acrescenta.
Eu entendo Aradya. Para nós, ciganos, a vida é uma roda e ela tem que girar, nos levar para lugares diferentes, pois a nenhum lugar nossa alma pertence. Quando um cigano morre, nós queimamos em tochas porque viramos estrelas, não lápide.
Sou da tribo cigana desde que nasci. Ou desde que entendo que nasci. Não lembro de meus pais e Mama Majaris disse ter que encontrado por entre as flores do campo, rindo, como um presente da mãe-lua. Ela me examinou, me levou para os ciganos e cuidou de mim. Cresci com minhas irmãs de alma, Aradya e Annaju, uma noite eu me tornarei vampira também, mas Mama Maja disse que ainda não tenho idade para completar a transformação.
Cada clã de vampiros possui particularidades únicas e Rynbelech suga suas forças para te dar as dela. Eu lembro como Annaju ficou magra, quase virou um esqueleto! Eu podia ver suas costelas e não havia roupa que parasse em seu corpo magricelo, os panos escorregavam! Todo dia Mama Maja mandava apertar na cintura e no busto. Depois que se transformou ela voltou ao normal, está até mais corpulenta.
Cada vampiro recebe heranças da Deusa Rynbelech, ela escolhe quais você merece ter, então Aradya nasceu com uma rara herança que damos o nome de Graça de Netheru, ela tem o controle do clima, pode tornar um dia de sol em uma tempestade de nuvens negras, escurecer o dia, proteger nosso acampamento com névoa, chamar raios e trovões, trazer uma nevasca... Nem preciso dizer que ela é muito preciosa para toda a tribo.
Annaju foi diferente, Rynbelech escolheu suas heranças depois que ela se transformou deu a ela o fogo, indomável como sua personalidade e a impermeabilidade dos cristais. Da natureza, ela pode tirar o cristal que quiser usar, solidificando os elementos como bem desejar. Utilizar cristais é outra raridade e até então Rynbelech nunca tinha dado a ninguém. Vendemos os cristais de Annaju, é basicamente isso que tem nos permitido continuar vivendo, pagando nossa comida e roupas, os consertos da carruagem.
Eu gostaria de saber quais heranças a Deusa Rynbelech vai escolher para mim. Quais são as verdades que ela encontrará oculta em meu coração?
Mama Maja tem todas as heranças, mas os ciganos estão dizendo que ela está perdendo as forças e fica cansada a cada dia. Ela sabe que será substituída por Rynbelech em breve, ele precisa de sangue novo e forte. A deusa Rynbelech escolheu nossa irmã Annaju, em breve Mama Maja passará a Annaju sua deusa-interior.
Esse é outro motivo pelo qual estamos indo para o Castelo Riezdra para encontrar com os outros vampiros: A cerimônia de passagem é muito delicada e há apenas um sacerdote que pode realizá-la, o líder do clã Blonard. Como o Conselho é formado pelos líderes de todos os nove clãs, foram todos chamados para se reunirem. Mama Maja quem fez essa solicitação, assoprando um canto em uma noite fria e calma, para o vento levar ao nosso ilustre Imperador Tsezar Riezdra sua mensagem.
Viajamos por mais algumas horas, eu não consegui dormir com o chacoalhar da carruagem, havia muitos pedregulhos no chão. Os sons da floresta se tornam assustadores, especialmente quando o vento assobia, pois é difícil saber se é um animal uivando, as montanhas sibilando ou as bruxas se aproximando. As bruxas gritam bastante, dão risada, mas não anunciam seus ataques.
Em um pedaço do caminho passamos por um pedágio do império.
-- Mama, mais um pedágio. – Aradya avisa, checando pela janelinha.
-- Não temos como pagar por todos os carros. – Annaju morde a boca, apreensiva.
-- Temos o meu anel. – Ofereço com dor no coração.
É um anel de platina, ouro e pedras raras. O diamante do centro é tão bonito e puro que pagaria por nossas carruagens e sobraria um pouco. O único problema é que esse é o único objeto que foi encontrado comigo, em um cordão no meu pescoço, ainda que eu fosse um bebê. É a única pista da minha verdadeira família e aquele diamante em especial eu nunca vi um parecido. Um comerciante disse que eu teria chances de saber mais notícias ao norte, exatamente onde o Castelo do Império fica.
-- Vassily, coloque esse anel em baixo da língua. – Mama Majaris me olha firme.
-- Mas Mama!
-- Faça logo o que estou dizendo. Aradya, me dê seus brincos.
-- Ah, claro, Vassily sempre protegida! – Aradya enche as bochechas de ar arfando.
-- Vassily é especial e esse anel é a única prova disso. Vocês sabem muito bem, ela foi um presente da lua para nós, a nossa Deusa Rynbelech a enviou como resposta a nossas preces.
-- Claro, Mama, claro. – Aradya concorda com uma revirada de olhos. Não é que minha irmã de alma me detesta nem nada disso, nos damos muito bem, mas é que ela não quer dar os brincos, de ouro e esmeralda, um presente que restou do seu pai.
-- Aqui, minha filha, fique com o meu brinco, foi seu pai que me deu. – Mama Majaris tira seu único brinco, de diamante e ouro. -- Guarde aí nesses peitos gigantes.
-- Muito bem. – Aradya troca seus dois botões de esmeralda pela gota de Mama Majaris e guarda nos peitos, cobrindo-os com o seu véu amarelo.
Coloco o anel debaixo da língua. Não abri a boca. Os homens das estradas me deixam aterrorizada. Uma vez um deles pediu uma garota para Mama Majaris para nos deixar continuar. Nenhuma de nós queria, claro, eu especialmente e uma das garotas humanas acabou sendo escolhida por Mama Majaris depois de uma votação nas famílias. Thalassa está grávida agora, vomita mais que tudo, seus olhos, responsáveis pelo seu nome que significa "oceano" nem parecem mais ter vida. Mama Majaris sempre que pode tenta aliviar o fardo para ela, mas nós sabemos que não há nada que devolva à Thalassa sua honra, exceto o fato de que ela será transformada em vampira, como presente por seu sacrifício.
Eu tenho vontade de chorar toda vez que penso nisso. Toda vez o mundo me mostra que os fortes abusam dos fracos, que os ricos cobram mais dos pobres e que, nós, que não temos nada, perdemos até o direito de existir.
-- O que temos aqui? – O homem do império, vestido como um guarda, abre a nossa tenda.
Ele não é um vampiro e assim que vê três pares de olhos brilhantes, ele rapidamente fecha a tenda. Logo, outro homem aparece e esse é um vampiro.
-- Viajando para o castelo, minha senhora? – Ele pergunta. Seus olhos brilhantes e seu corpo extremamente musculoso não mente: ele é um vampiro, do tipo guerreiro. Seu cabelo é curto, enrolado no alto da cabeça e há um broche de bronze que indica que ele é o primeiro oficial do regimento, preso em sua bata verde e amarela, que tem um bordado central do símbolo da cobra traiçoeira de Riezdra. A posição do símbolo é intimidante, de boca aberta, com os dentes de fora, a serpente se prepara para dar um bote.
Riezdra são conhecidos como os traidores, dizem que o pai do Imperador esfaqueou o Imperador anterior para assumir ao trono. É um clã cujo sangue foi marcado e que todos os seus descentes possuem. Ninguém liga para isso agora, o Imperador Tsezar pune todos os que ousam se lembra dessa história – mas os ciganos não se esquecem.
-- Tenho uma audiência com Vossa Majestade Imperial. – Mama Majaris responde, sem se intimidar, mas eu já abaixei a cabeça e procuro nem encará-lo.
-- Uma cigana? - Ele venta, rindo.
-- Uma cigana que Vossa Majestade Imperial se lembra muito bem. – Mama Majaris responde, ela finge tirar os brincos. -- Aqui, meu senhor, espero que seja suficiente para pagar por nossos carros.
A mão do homem, grande, pesada, passa pelo meu campo de visão. Os brincos de Aradya desaparecendo assim, como um pedágio. Agora tudo o que ela tem é aquela gota de diamante, para lembar-se do pai.
-- Não todas, minha senhora, nem são de boa qualidade. – O homem diz.
-- Meu senhor, eu tenho uma audiência marcada precisamos continuar. – Mama Majaris tenta. -- Que fique uma carroça, a de comida, para o senhor e seus soldados.
O homem suspira. Ergo um pouquinho os olhos analisando sua reação. Ele olha por cima do ombro, morde os lábios grossos e feridos, de um soldado cansado e já quase sem forças de regeneração. A comida é importante para ele, esses homens precisam se recuperar.
-- Fique com a comida, minha senhora. Há crianças demais em sua caravana e uma grávida. – Ele guarda os brincos. -- Contorne o lago. Os soldados adiantes tem a visão omitida pela montanha.
-- Pamant projeta inimá! – Mama Majaris agradece. Até respiro. -- Se seu regimento precisar, pararemos ao amanhecer para descansar não muito distante.
-- Obrigado, minha senhora. – Ele se afasta da janela.
Seguimos viagem e como o soldado disse, saímos da estrada. Pouco antes do amanhecer paramos as carroças nos descampados e todos os vampiros se trancam para se proteger do sol. Mama Maja abriu um buraco na terra, eles se enterraram. Os ciganos humanos ficaram para proteger o local e eu pedi para descansar na grama.
Dormi um pouco, acordei com o cheiro de carne assando para o jantar. O regimento do soldado que nos ofereceu ajuda estava lá, reconheci a bandeira fincada na terra, no esconderijo deles.
-- Vassily. – Thalassa me chama. Ela é uma moça bem nova, humana como eu, dançamos juntas no festival das espadas às vezes. Ela é uma das poucas meninas que fala comigo agora, a maioria me evita. Thalassa me evitava também, mas depois que ficou grávida, ela perdeu opção. As meninas também não chegam perto dela. -- Estou indo tomar banho no rio, vamos comigo?
-- Sabe que não gosto de tirar a roupa em público. – Torço a boca indigesta.
-- Eu e Lypi não somos exatamente público. Só eu tenho olhos. – Thalassa ri, segurando no meu braço e me puxando em direção ao rio.
-- Coitado! Vai chamar de Lypi? – É uma palavra que significa "arrependimento".
-- Acho apropriado. – Thalassa ergue o queixo, meio brava. -- Tome banho comigo e me convença a mudar de nome.
-- Thalassa...
-- Eu sei, eu sei, olhe, ficaremos uma de costas para a outra. Se quiser, eu coloco uma venda.
-- Não sei...
-- Vassily, por favor, não quero ficar sozinha. Somos amigas ou não? – Ela chantageou emocionalmente, com uma vozinha triste.
-- Somos amigas.
-- Então! Se somos amigas, qual o problema? Amigas tomam banho juntas, conversam seus segredos, somos amigas ou não?
-- Hm. Deve estar de venda. – Exijo.
-- Claro! – Thalassa abriu um sorriso.
Andamos um pouco dentro da mata. O rio não fica distante do acampamento, mas não queríamos que ninguém nos visse. Thalassa, por vergonha da barriga que já não podia esconder, cresce a cada dia. Encontramos um ponto, Thalassa foi a primeira a ir para a água e eu só tirei o vestido depois que ela cobriu os olhos. Assim de perto, aquela barriga era assustadora, porque o que estava ali dentro, ia ter que sair. Eu sabia que Thalassa estava amedrontada.
Entrei na água. Por causa do verão nem estava tão gelada e era possível tomar um banho refrescante. Ajudei Thalassa a limpar os cabelos castanhos claros. Fazemos uma mistura de ervas para lavar o corpo e a água estava tão fria, que eu só queria terminar, mas Thalassa estava ainda mais lenta do que o normal, cansava só de ficar em pé. Juntei uma mecha na mão, esfregando folhas e flores que pegamos no caminho.
-- Então, qual o nome você quer dar? – Thalassa pergunta, cortando o som do correr da água.
-- O soldado que se juntou ao regimento. Ele deve ter um nome bom, o coração é nobre, ele aprecia crianças e deixou a comida para que você não passasse fome. Podia dar o nome dele.
-- E qual o nome dele?
-- Eu não perguntei!
-- Não acredito! – Thalassa vira, jogando água em mim.
-- Aaah! - Atinge bem os meus olhos causando uma ardência terrível. Cobri os olhos com as mãos.
-- Oh, meu Deus! – Thalassa gritou com pavor.
Olhei para ela ainda com os olhos doendo e a vi com a venda no alto da cabeça, uma expressão de espanto. Seus olhos estavam no meu corpo, de um jeito terrível, sua boca retorcida para baixo. A água mal cobria minha cintura e era bem cristalina.
-- Thalassa, eu... – Tentei acalmá-la, erguendo as mãos.
-- Não chegue perto de mim! Não chegue, você é um monstro, um monstro! – E ela, mesmo com sua enorme barriga, saiu do rio, pegou suas roupas e correu ainda nua para o mais longe possível de mim.
Sequei as lágrimas. Procurei ignorar tudo o que tinha de errado com o meu corpo e saí, indo buscar minhas roupas antes que o sol sumisse no horizonte.
Nossas roupas são desenhadas de forma tal que as mulheres e os homens se vestem diferente, então logo de longe você já sabe com quem está falando. Inclusive, suas roupas designam sua classe social. Na corte usam estampas, bordados feitos de ouro e prata, panos fortes, rendas e muitas joias costuradas aos tecidos, nos cotovelos e na cabeça. Nos campos, é bem mais simples, peças lisas, normalmente furadas, sem bordados e qualquer coisa. Mulheres usam vestidos de saias longas e mangas esvoaçantes, o cinto fica sempre abaixo, no quadril. Já os homens usam meia-bata, calça, botas altas.
Nós ciganos nos vestimos de forma bem específica: com o que temos. Transformamos velhos pedaços de vestidos em saias ou calças e usamos as camisolas como camisas – normalmente tingimos –, longas ou curtas. Penduramos tecidos na cintura, usamos lenços na cabeça e muitos cordões com cristais. Uma saia, se amarrada, pode virar uma calça.
Eu gosto de usar calça por baixo da saia, ajuda a subir nas árvores para pegar os frutos e para observar ao longe. Meu cabelo comprido, liso e preto estava molhado quando subi com dificuldade em uma árvore musgosa. Minhas mãos se encheram de musgo e limo, meu pé escorregou algumas vezes, mas consegui encarar a amplitude da floresta. Estávamos perto! Eu já podia ver as pontas das torres do castelo acima na montanha, sendo pintadas pelo alaranjar do céu, que já se dividia em duas cores. A certeza me invadiu: mais uma noite e chegaríamos em nosso destino!
Até me animou. Estou exausta, não aguento mais viajar! Viro para descer da árvore e vejo um objeto pendurado, uma espécie de boneca feita com partes de animais, ossos, cabelos humanos e pregos no lugar dos olhos. Meu corpo inteiro gela! Aquele era um objeto de bruxaria e isso queria dizer que estávamos no território das bruxas.
Meu coração pula uma batida e desço correndo gritando:
-- Bruxas! Bruxas! Estamos no território das bruxas!
E a resposta vem da floresta: uma lufada de ar bate em meu rosto gelando a pele, trouxe uma risada tenebrosa. Sinto um arrepio e as árvores se dobram com a potência do vento, as folhas se erguem do chão e o som de risada fica mais pesado, acompanhado do som das correntes.
Tomo o caminho que eu fiz, mas inverso, logo estou na boca do acampamento e a fogueira para assar a carne já se apagou. Os ciganos estão correndo, gritando, procurando proteção. Achei que por estarmos perto do castelo estaríamos seguros, mas pelo visto, me enganei!
-- Hihihihi! – As risadas ressoam.
Logo as árvores se abrem, empurrando as copas e dobrando-se com a vontade das bruxas. Elas aparecem acima de nós, com suas peles verdes, narizes pontudos, roupas negras e chapéus que lembram um espinho. Eu conto dez assustadoras e poderosas bruxas. O suficiente para o meu sangue parar de girar no meu corpo e eu ficar tonta, como se nem conseguisse respirar.
No centro, deve ser a líder, de braços erguidos e olhos brilhantes. Ela não está rindo, mas concentrada, sussurrando uma magia.
-- Agora! – A líder grita.
As bruxas iniciam voos rasantes e eu sei que temos que correr, pois é assim que, como falcões, elas pegam suas presas e levam para longe para matar. Uma delas voa em minha direção, eu me abaixo, me jogando inteiramente ao chão. Ao meu lado, um cigano é levado aos berros de pânico.
Em desespero, os ciganos começam a se juntar, subir nas carroças para fugir. Uma mulher organiza as crianças, chamando-as. Paro um dos homens que passa por mim correndo:
-- Você viu Thalassa?
-- Não! – O cigano de cabelo branco me olha assustado. -- Ela estava com você!
Deixo o homem ir. Meu coração bate desesperado. Será que Thalassa se perdeu quando fugiu? Corro contra a multidão, tentando voltar para o rio, as carroças começam a deixar o local e as bruxas continuam voando e gritando.
-- Hahahaha! – As risadas ecoam entre as outras.
-- Thalassa?! Thalassa! – Grito, com as mãos perto da boca.
-- Vassily! – Escuto a voz dela.
A urgência toma conta de mim e procuro seguir o som, mas o vento me confunde, as vezes parece perto, as vezes longe, em direções opostas. As bruxas continuam levando pessoas e o medo me consome, mas não paro de tentar buscar por Thalassa.
-- Vassily! – Ela me chama, perto.
Encontro Thalassa abrigada em baixo de uma carroça, ao lado de outras moças e crianças da caravana. Meu corpo inteiro treme assustado e as meninas estão chorando.
-- Se esconda aqui! – Ela me chama, erguendo as mãos.
Eu tomo essa direção, mas antes que eu chegue a carroça voa com uma lufada de ar forte, as bruxas riem mais e se aproximam, puxando uma das meninas. As crianças saem em disparada, cada uma para um lado.
Corro até Thalassa e a puxo pelas mãos.
-- Venha, vamos! – Preciso fazer força para ela ficar de pé.
-- Ai! Ai! – Com dor na barriga gigante, ela mal consegue andar.
-- Força, você precisa vir! – Dou um pouco de apoio passando o braço dela por meus ombros.
-- Não consigo! – Ela choraminga.
-- Consegue sim!
-- Não me deixe morrer, por favor, não me deixe morrer. – Thalassa chora, desesperada, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Nós fugimos como dá. Eu consigo levá-la até uma carroça, perto das bandeiras. Um homem a segura e a coloca para dentro, puxo duas crianças que nos seguiram e coloco com eles. O homem estende a mão para eu subir, mas sinto apenas uma coisa se grudando ao meu tornozelo, envolvendo-o, a sensação é gelada, mas viva.
-- Aaaah! – Grito, sendo puxada para o outro lado, na direção oposta da que eu queria ir.
-- Vassily! – Thalassa grita, mas é tarde para mim.
Somos distanciadas muito depressa. Tento me segurar na terra, nas raízes, nada funciona, os objetos escorregam das minhas mãos, até machuca e faz um corte na palma. É tão idiota, sou tão fraca perto de uma bruxa. Sou arrastada no chão por uma bruxa em uma vassoura, em alta velocidade.
-- Socorro! Mama! Mama!
Sei que gritar é inútil, ainda tem sol no céu e Mama não pode realmente vir me salvar. A bruxa ergue voo, subindo rente em uma árvore. É assustador perceber que estou de ponta-cabeça, subindo em grande altura. Eu tento pegar os galhos, me prender de alguma forma, mas acabo quebrando um graveto na mão. No desespero, finco o graveto na mão da bruxa e ela me larga.
Caio toda a altura que subi, pegando velocidade com o peso, quebrando os galhos das árvores e rasgando meu corpo e roupas. Tudo escurece antes de eu atingir ao chão.
Um trovão relampeja. Abro os olhos. Uma fogueira está crepitando ao meu lado. A chuva bate contra as grandes folhas das árvores e uma gotinha pinga na minha bochecha. Está tão frio! As folhas das árvores estão congeladas, uma fina camada de gelo envolve os troncos e parece até que nevou. Esquisito! Achei que era verão!
-- Bruxas! – Grito, sentando-me.
-- Shh! – Thalassa, ao meu lado, segura a minha boca. -- Faça silêncio, elas estão pela região. – Sussurra perto do meu ouvido.
-- Ai... – Coloco a mão na testa, sentindo que tenho uma ferida. Há um pouco de sangue seco nos meus dedos e meus braços estão todos machucados.
-- Vassily! – Mama Majaris sai de perto da fogueira e se aproxima de mim. Reconheço Aradya e Annaju com ela, as duas se viram e vem me abaçar. -- Ai, por Netheru, você está bem.
-- Estou sim, Mama. – Dou um sorriso.
-- Ouvimos você gritar. Não podíamos sair da terra, foi desesperador. – Annaju sentada do meu outro lado e com um pano, passa na minha testa, cuidando da ferida.
-- Vieram muitas bruxas. – Aradya senta do lado de Annaju e tira o seu ponche amarelo, jogando em cima dos meus ombros. -- Eu fiz chover, para os soldados poderem sair.
-- Chover? Você trouxe o inverno! A floresta congelou! – Annaju a repreende.
-- Funcionou, não funcionou? – Aradya retruca.
-- Shh, meninas. – Mama Majaris as repreendem.
-- Senhora? – O soldado primeiro oficial a chama.
-- Façam silêncio. – Mama Majaris pede, ela segura no meu rosto, dá um beijo no alto da minha cabeça longe da ferida e me deixa com as irmãs. -- Aradya, pegue um pouco de sopa para sua irmã, Annaju, prepare os homens da caravana, vamos andar.
-- Sim, Mama. – Aradya fica em pé.
-- É pra já. – Annaju segue para o outro lado pedindo para os homens levantarem e pegarem as crianças, ajudarem as moças, essas coisas.
-- Você deu sorte, quando caiu, as copas das árvores seguraram você. – Thalassa explica. -- E os soldados saíram tão logo as nuvens fecharam o céu. Eles conseguiram expulsar as bruxas, mas muitos morreram.
-- Oh. – Entristece-me. -- Achei que por estarmos perto do castelo, estaríamos mais seguros.
-- Obrigada, Vassily, eu fui tão grosseira, mas você voltou para me salvar e não me deixou morrer. – Thalassa pede desculpas, segurando minha mão.
--Hm. Bem, somos amigas. – Comprimo os lábios sorrindo.
-- Somos amigas. – Thalassa sorri e solta minha mão, colocando as duas mãos em sua barriga e se ajeitando perto da fogueira. -- Connor, ele será Connor. É o nome do soldado que salvou todos nós.
Dou um sorriso contente.
Aradya me trás um copo de sopa, que eu tomo com muita fome e gosto. Não tem gosto de nada, é bem rala, mas é salgada o suficiente para me colocar em pé. Separamos os cobertores que conseguimos para as crianças e os soldados conseguem recuperar duas carroças, uma delas, colocam Thalassa e as crianças mais novas.
E vou caminhando junto com as minhas irmãs, de mãos dadas, seguindo Mama Majaris que guia a caravana ao lado do soldado Connor. Andamos no ritmo que dá, mas puxando as pernas ao máximo, pois logo será dia.
(Continua no próximo)
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Obrigada! Obrigada!
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